segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011



Nunca pensei em ter mulher e filhos. Sempre me imaginei velho e sábio num mosteiro do Tibete (se é que ser velho num mosteiro do Tibete implica qualquer tipo de sabedoria...).
Bem, hoje estou há vinte e cinco anos com a mesma; os filhos tão aí; caminho - a passos firmes - para a velhice; a sabedoria ficou pra trás, e o mosteiro no Tibete, ah, o mosteiro no Tibete...
O eremitismo e o monasticismo são práticas religiosas comuns ao Oriente e ao Ocidente. Sempre fui fascinado, e sempre tive fantasias a respeito; sempre senti certa inadequação com o concreto, um vago desconforto com os assuntos do mundo. Sempre mantive um pé na transcendência, e sempre gostei dessa idéia de inutilidade social misturada com reflexão pessoal. Sempre tive um jeito - digamos, longínquo - meio monge de ser, sempre fui "gauche" entre os demais (certa vez, uma namorada disse que eu era "uma nuvem de calças"; até hoje não sei se foi elogio ou ofensa...)
Que glória! uma vida voltada para a leitura, o ócio e a solidão. Uma vida simples, com trabalhos simples, em torno de coisas simples.
Nessa, já se vê, não dá mais; mas, quem sabe, na próxima eu volto como eremita num mosteiro, pendurado lá em cima, bem nos altos do Himalaia (Borges dizia que uma das incoveniências do céu talvez seja a necessidade de conviver com muita gente...).
A próposito, o problema com a reencarnação é que ela supõe uma visão negativa da vida: consequência de erros e equívocos passados, ela é forçosamente ruim, um castigo a ser resgatado, uma provação a ser cumprida. Como a reencarnação é exclusivamente produto de uma falta - digamos, um déficit comportamental, sendo assim uma reparação - quando você volta, necessariamente, volta para o futuro.
Mas, sendo a vida boa e viável, como, de fato é, admitamos, por puro deleite, que os que a vivem bem, também possam voltar para usufruir das benfeitorias que por aqui fizeram e que por aqui deixaram. A reencarnação, então, não mais como castigo e punição, mas opção e escolha; uma espécie de prêmio por bons serviços prestados à si mesmo. Nesse caso, bem que ela poderia incidir retroativamente, de acordo com a livre e soberana vontade do beneficiado.
Então, vou desde logo avisando: tendo vivido minha vida numa boa - sim, uma mistura bem temperada de excessos com contenções, desregramentos com virtudes - quero ir direto para o passado, como um daqueles monges barbudos e solitários que passavam os dias copiando manuscritos da antiguidade clássica numa isolada, fria e misteriosa abadia medieval.
Bem, no mais - e enquanto isso - estou tranquilo e vou levando, como posso e como sei: é que lendo o poeta e místico alemão Angelus Silesius - "A solidão é necessária: mas, se não és vulgar, podes estar em qualquer lugar como num deserto" - aprendi que solidão é mais uma questão interior a ser pensada, que uma experiência exterior a ser vivida.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

EXPLICANDO E DESMISITIFICANDO A – MINHA – QUIMIOTERAPIA.

O Centro médico não é grande, mais tem duas salas confortáveis, além de uma terceira, com um médico permanentemente de plantão. Na primeira, ficam os acompanhantes dos pacientes e, na outra, os próprios, confortavelmente instalados em poltronas reclináveis. Em geral, as seções ocorrem uma vez por semana, todas as semanas. Uma enfermeira, altamente especializada reina soberana, distribuindo, operando e controlando cada protocolo. (Protocolo é como se chama o conjunto de substâncias que serão administradas em cada um, conforme o tipo e as características específicas de cada câncer). Essas substâncias são administradas através de bolsas – como aquelas de soro nos hospitais – que pendem do teto e que ela vai aplicando, seja através da veia da mão, seja – como é o meu caso – através de um cateter cirurgicamente instalado do lado direito do peito. (Não me pergunte qual é a diferença entre um método e outro). Cada seção dura em média três horas e meia. Uma servente oferece cafezinhos, suquinhos, chazinhos e biscoitinhos (tudo no diminutivo, é claro). O “astral” é bom, o ambiente é descontraído e alegre, sobretudo quando a maioria é de mulheres, que, como se sabe, não param de falar (os homens, mais enrustidos e complexados, ficam lendo ou fingindo que dormem. Homem acha que se falar muito com outro homem, vão achar que ele é homosexual. Sobretudo, ele mesmo vai achar sobre ele mesmo...). Nesse ano e meio, apenas uma vez presenciei uma situação delicada, quando um paciente teve uma alergia súbita a uma das substâncias aplicadas. (o médico e a enfermeira rapidamente controlaram a situação, mas eu fiquei apavorado, pensei que o cara fosse morrer ali na nossa frente. Mas eles lidaram com a situação como se fosse a coisa mais normal do mundo... Profissional é isso).
A minha quimio tem uma especificidade: é que tenho dois protocolos: no primeiro, numa semana, faço, como todo mundo, as três horas e meia na clínica, e pronto. Na semana seguinte, após essas três horas regulamentares, a enfermeira me despluga dos saquinhos e me repluga com uma garrafinha que fica dentro de uma pochete que eu, então, carrego na cintura por dois dias, ao fim dos quais a garrafinha se esvazia. A coisa é discreta, parece mesmo uma pochete e, com uma camisa pra fora da calça, posso fazer tudo normalmente, sem que ninguém note nada de diferente. (O difícil é dormir; são duas noites mal dormidas).
Bem, em suma, a quimio é isso e assim. Não dói, incomoda um pouco, é meio chato, mas da pra levar.

PERRENGUES DA QUIMIO.
- Toda quimio depende do estado de saúde do paciente. Isso significa que, na véspera de cada uma, temos que tirar sangue. Aí, o médico verifica as plaquetas, a anemia etc e libera ou não o tratamento para aquela semana. Eu já fiquei anêmico algumas vêzes, mas o médico, sadicamente, optou por me receitar umas injeções na barriga. Já tomei dez (calma, gente, dói só um pouquinho...).

- Enjôos, aftas, queda de cabelo. Não tive nenhuma dessas ocorrências. Perguntei ao médico porque só as mulheres sofriam com a queda dos cabelos; ele me respondeu que era porque a quimio tinha sido inventada pelos homens...

- Diarréia. Essa, quando bate, é braba. No meu caso, a coisa se complica porque sou um glutão nato. Não faço nenhum tipo de dieta, continuo comendo muito, e de tudo. Por exemplo, outro dia estava andando pela São Clemente quando vi num boteco chechelento a seguinte promoção do dia: "Rabada com agrião e polenta". Encarei, e passei a tarde estacionado no troninho. Mas não me arrependo, valeu cada mordida. (Agora, já estou anunciando - para o horror de toda a família - que estou pensando em revisitar uns acarajés apimentados que uma baiana fake faz todos os sábados num quiosque da Cobal).

- Neuropatia Medicamentosa Periférica. Trata-se de um leve comichão permanente nas pontas dos dedos da mão e dos pés, devido a uma substância - platina - da quimio. Os médicos dizem que passa com o tempo. Bem, já estou com isso há uns cinco meses e até agora nada. Mas, você acaba se acostumando, e tudo bem.

- Estafa, exaustão. As vezes, a quimio te deixa literalmente prostrado. Nessas ocasiões, gosto de ficar esparramado no sofá com toda a família me paparicando. Cafezinhos, suquinhos, chazinhos e biscoitinhos (tudo no diminutivo, é claro).

- Estou tomando agora uma substância nova no meu protocolo. O médico já tinha me avisado que ela era mais pesada e que uma das conseqüências era a erupção de pequenas bolinhas vermelhas por todo o corpo. Ele me disse também que, quanto mais embolotado eu ficasse, mais isso indicava que o tratamento estava dando resultado. Caraca! Estou todo embolotado.

No mais, após cada seção, eu e a Glaucia sempre tomamos um chocolate ou cafezinho na Kopenhagem da esquina. Faz parte.

A PROPÓSITO: LIÇÕES DE VIDA.

- Tenho um amigo de infância que teve há uns seis anos atrás um AVC severíssimo. Bem, ele hoje é um cara de bem com a vida e com a própria sorte, apesar das limitações e da dor permanente que sente do lado “morto” do corpo (!). Quando vou visitá-lo, nas poucas palavras que consegue pronunciar - e por iniciativa dele -, sempre cantamos juntos aquela música do Waldik Soriano: “Sorrrria meu bem, sorrrria....”

- Segundo o dr. Carlos Alberto Plastino, analista da minha irmã, “viver é como andar de bicicleta: se parar, cai”.

EM TEMPO: o bode começou em 2009 quando notei que havia sangue nas minhas fezes. Vacilei, porque demorei a tomar providências; de qualquer modo, em novembro fiz uma colunoscopia que detectou um tumor maligno no intestino. Fui operado (não, não fui colostomizado) e logo em seguida comecei uma série de 12 seções de quimioterapia. O resultado foi ótimo, pois os exames mostraram não haver mais nenhum sinal maligno no corpo. Teoricamente, estava curado. Bem, três ou quatro meses depois, num exame de rotina (quem teve câncer tem que fazer esses exames para sempre) foi detectado uma metástase atingindo o fígado e o pulmão. Recomecei então a quimio, e é nesse ponto que estou atualmente.
Na verdade, o câncer não mudou quase nada no meu cotidiano. Trabalho um pouco menos, é verdade, e me canço com mais facilidade do que antes. Mas tenho uma vida absolutamente normal, continuo fazendo tudo que gosto e que sempre fiz. Em suma, vou levando “como Deus é servido”, se é que vocês me entendem...

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Dando uma olhada no arquivo de coisas já postadas no blog, fiquei na dúvida se esse poema já tinha sido postado ou não. Bem, na dúvida, la vai:

BALANÇO DE VIDA
Nunca fui professor, mestre ou doutor.
Nem chefe, diretor, presidente.

Nunca inclui, nem exclui.

Nunca entrei num lugar que soubessem,
de ante-mão, quem sou.

(Como o velho Groucho,
nunca entrei pra clubes
que me quisessem como sócio).

Não freqüentei patotas,
não participei de rodinhas,
nem disse-me-disses por aí.
Nunca pontifiquei sobre o que sei,
ou não sei.

Na maior parte do tempo,
vivi pelo avesso.
Entrei pela contra-mão.

(Em tempo:
Nunca fui perfeito.
Me embaralhei, confundi, atrapalhei.
E resmunguei muito por aí).

Não me arrependo do que fui e fiz:
fui como sei.
fiz como sou.

REFLEXÕES SEM DOR

- Certezas definitivas empobrecem. Dúvidas permanentes enriquecem. (Trata-se, sem dúvida, de uma simplificação. Mas essa é uma das poucas certezas que tenho, pelo menos no campo da filosofia. Indamais, acho que - modestamente - Nietzsche concordaria comigo).

- Sou contra a igreja por um motivo simples: em geral, pecados dão mais prazer que virtudes.

SABEDORIAS PROFANAS

- Aquele que transgride não apenas quebra uma norma. Ele vai a algum lugar onde os outros não vão, e conhece algo que eles não sabem. Susan Sontag.

- A máquina do mundo é complexa demais para a simplicidade dos homens. Beatriz Sarlo.

- Cada corpo aprisiona uma alma, louca para dele sair. Os santos e os poetas aprendem a soltá-las. São goteiras do espírito porque escapam dos limites do mero aqui e agora, desse presente poderoso, urgente e gozoso que nos aprisiona nas atenções do instante. Roberto DaMatta.

- Cada opinião é também um esconderijo, cada palavra também uma máscara. Nietzsche.

domingo, 13 de fevereiro de 2011




Segundo o confucionista Mencius, “o homem de bem estabelece distância entre o matadouro e a cozinha”. É bom concordar com o filósofo, mas não é sábio levá-lo ao pé da letra. Fiquemos, pois, com o “espírito da coisa”.
Bem, é pessoal e subjetivo o que dá prazer a cada um. Permitam-me, entretanto, uma pequena digressão gastronômico-filosófica sobre o vegetarianismo, essa renúncia gustativa carregada de boas intenções, compaixão, altruísmo... e muita ingenuidade.
Fiz, é claro, minha cota de sacrifício misturando bolinhos de tofu com algas marinhas; também fui vítima da dieta do arroz macrobiótico mastigado 60 vezes. Tudo bem, com 20 anos e mergulhado na contracultura, a gente faz qualquer bobagem, desde que tenha cheiro e gosto de “Oriente”.
Mas a maturidade é exigente, refina e apura o paladar intelectual.
Considere:
A violência embutida na morte do boi não é, em essência, diferente da violência embutida na do pé de alface (tudo ligado a tudo, um só um).
Em todos os sentidos, a vida se nutre da morte. Ela é o alimento da vida, e vice-versa. Todo ser vivo já nasce morto; é a morte propriamente dita que, essa, só vem depois.
Comer carne é produto de longo processo de evolução/adaptação. Não é, certamente, fruto do acaso ou capricho. Como resultado, nossa flora interior - nossa ecologia interna - depende dessa dieta altamente especializada. Abdicar de carne é promover o desequilíbrio interno, independente de opinião, gosto ou filosofia pessoal. O vegetarianismo, pois, subverte a ordem natural através da qual a natureza ordena as suas criaturas. Trata-se de uma distorção cultural que subverte uma disposição natural: desequilibra, desregula, desarmoniza.
De resto, compare uma camponesa alemã, cuja dieta é baseada em proteinas e laticínios, com uma vietnamita, com dieta de arroz e cereais. Verifique peso, altura, disposição física e mental, longevidade etc (O oriental, no entanto, teve a sabedoria de transformar suas carências em virtudes: hoje a culinária japonesa - pobre e limitada - é consumida como alta gastronomia).
A natureza - equilíbrio e harmonia - é pura carnificina: é assim que está programada para ser, e é assim que deve ser. Na natureza não há culpa, hierarquia, diferença ou subordinação.
Não há separação, mas diversidade, necessidade e precisão.
A natureza, dissse Rimbaud, “não é um espetáculo de bondade”.
Deixemos, pois, filosofias, boas intenções, ingenuidade, altruísmo e compaixão fora disso: a opção vegetariana só tem sentido como gosto pessoal!
Saiba:
A eventual extinção das espécies vegetais causará mais prejuizo, e provocará mais danos à humanidade, que a eventual extinção das espécies animais.
No mais, mantenha-se forte, saudável e carnívoro, mas, sobretudo,
Lembre-se:
O elo continua, o fio não se parte, pois a matriz é uma só.
Indiferente,
A vida segue seu curso:
E a fonte jorra.
Portanto, não negue, não negligencie e não subestime o animal que você é.
É assim que você se equilibra e se harmoniza com a (sua) natureza.
Viver é comer e ser comido.
E, nesse caso, prefira sempre a primeira alternativa, como inegável prova de sabedoria.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

REFLEXÕES SEM DOR.

- Persigo a escrita e a poesia porque sei que jamais vou alcançá-las. A frase é ótima mas, infelizmente, não é minha; é de Francis Bacon (O pintor, não o filósofo): Persigo a pintura porque sei que não é possível alcançá-la. In: F. Maubert, Conversas com Francis Bacon. Gosto desse tipo de pensamento paradoxal, porque são profundamente Zen. Poderíamos pensar num Koan do tipo: O que é que se alcança, sem que jamais se busque? Ao que um jovem e afoito discípulo em busca de seu próprio caminho poderia responder: Alcança-se a si.

- O problema com as religiões formais é que elas reduzem a possibilidade, o campo, o âmbito, a abrangência da felicidade humana. E essa é a nossa irrecusável vocação, a nossa única e necessária obrigação ética e moral.

- Aos fins de cada um (vislumbrar seu próprio fim não deixa de ser uma sorte), é bom que cada um esteja reconciliado e em paz com seu próprio destino.

OS PRÉ-SOCRÁTICOS E A FILOSOFIA ORIENTAL

Arrumando e revendo papéis antigos (é, antigamente fazíamos fichas dos livros que líamos...), encontrei essas anotações que havia feito logo que comecei a estudar a filosofia oriental. Minha idéia era fazer um estudo comparativo entre ela e a filosofia dos pré-socráicos, mostrando suas semelhanças. Transcrevo essas notas, sem maiores modificações:

- Concepções cosmológicas do zen e aquelas propostas pelos filósofos jônicos da escola pré-socrática: a concepção da divindade como “devir” foi formulada tanto no Ocidente, por filósofos como Tales, Anaximandro, Anaxagoras e Heráclito, quanto por filósofos taoístas da antiga China. (Desenvolver)

- No Ocidente, os pré-socráticos foram os primeiros a colocar o problema do conhecimento como tarefa exclusivamente humana. (Desenvolver).

- A idéia de que o uno gera o múltiplo e que este, por sua vez, deriva do uno é compartilhada tanto pelo taoísmo quanto pela filosofia pré-socrática, assim como um “devir” em constante processo de mutação: a eterna conflagração cósmica; a permanente destruição e nascimento do universo através de ciclos que se sucedem eternamente são alguns dos temas comuns abordados por taoístas e pré-socráticos. (Desenvolver).

- A filosofia pré-socrática é materialista e formula questões comuns e próprias ao taoísmo porque:
- Não é teísta.
- A concepção do homem, do cosmos e da divindade como constituídos pelos quatro elementos - fogo, terra, ar e água - ou por cada um deles (Tales, Anaximandro, Anaxágoras).
- A idéia da “divindade” como algo, indefinido, indiferenciado e indecifrável. (Anaximandro)
- A convicção ontológica de que tudo está ligado a tudo. (Anaxágoras)
- A idéia de um devir em constante processo de mudança. “Tudo flui”, um vir-a-ser eterno e cíclico, unificador de opostos, denominado Logos. (Heráclito)
- A idéia de ciclos cósmicos, de criação e destruição do universo (Anaximandro e Heráclito).
- A idéia de que o Uno gera o Múltiplo e de que este deriva, por sua vez, do Uno. (De modo geral, todos.) (Desenvolver).

- Parmênides, por sua vez, que forma com Heráclito, os dois maiores filósofos da antiga Jônia, introduz a idéia e o conceito de um ser imutável, único e pessoal, dando início, propriamente, ao que se convenciona chamar de “pensamento ocidental”, com o racionalismo e o dualismo que o caracteriza. Estabelecendo e definindo a ruptura ontológica definitiva entre o ser e o não-ser, Parmênides marca a cisão entre o pensamento clássico e o pensamento moderno, e a introdução da razão como fonte, como base da diferença conceitual entre um e outro. (Desenvolver).

- O Ocidente tem a pretensão de marcar o nascimento da filosofia a partir dos pré-socráticos. Ignoram que na Índia e na China, desde tempos imemoriais, seus filósofos já haviam especulado sobre as origens do ser, a constituição da natureza, bem como as relações possíveis entre ambos. (Desenvolver).

Bem, nunca desenvolvi nada. Mas acho que está de bom tamanho. É bom olhar para trás e encontrar esses projetos não desenvolvidos. São, um pouco, aquilo que fomos um dia, e, certamente embalaram nossos pensamentos e contribuíram para a auto-estima que – a cada etapa – é bom erguer em tono de si próprio. Acho que, ao longo da vida, cada um deveria ter e manter um ou dois projetos imaginários.
Finalidade: preencher de si, o si de cada um.
Eu, por exemplo, atualmente mantenho, cultivo e afago quatro projetos imaginários: 1) - “Wittgenstein e o zen”. (sei de um autor que já escreveu sobre isso: H. G. Hodgson, Wittgenstein y el Zen, Ed. Quadrata, B.A., livro que achei num sebo chechelento na Corrientes em B. A. 2) -“Nietzsche e o budismo”. Nietzsche escreveu episodicamente obre o budismo em sua obra. Minha imaginária idéia é tecer considerações a respeito. Por exemplo: o conceito nietzschiano do Eterno Retorno. Nunca consegui saber bem o que o filósofo quer dizer com isso, mas, acho que deve ser, mais ou menos, o seguinte: viva sua vida e seja o mais feliz possível nela, de modo a que em todas as suas vidas que se repetirão eternamente, você não tenha nada do que se arrepender. Talvez seja a idéia mais maluca do grande filósofo. Mas acho que, por isso mesmo, da pra fazer uma reflexão entre ele e as teorias budistas da reencarnação. O Eterno Retorno nietzschiano seria uma espécie de reencarnação budista... sem culpa. 3) – “As filosofias do eu em G. Bataille e Nietzcshe”. 4) – “A poesia de Alberto Caeiro e o taoísmo”. Essa talvez seja a única em que vislumbro uma leve possibilidade de ser posta em prática, isto é, se os deuses do tempo foram tolerantes e condescendentes comigo.

SABEDORIAS PROFANAS

- As nossas maiores bênçãos chegam-nos por via da loucura, desde que a loucura nos seja dada por um dom divino. Sócrates. Fedro. E. R. Dodds, In: Os gregos e o irracional. Segundo Platão, Sócrates estabelece cinco tipos de loucuras ou delírios que condicionam as ações humanas: o profético, inspirado por Apolo; o purificador, inspirado por Baco; o poético, inspirado pelas Musas, e o erótico ou filosófico, inspirado por Eros. Platão. In: Diálogos. Mênon, Banquete, Fedro.

- Vejam o homem, saberão então o que esperar do mundo.
Nietzsche.

- Os manacás cheiravam, como se o mundo não fosse o que é.
Adélia Prado.

- “Deus criou o homem à sua imagem”, lemos no Gênesis. Isso nos faz duvidar do original. Parece-me muito mais concebível, muito mais sugestivo, muito mais verossímil que o homem descenda do macaco. (...) Como cópias de Deus, seríamos ridículos ou inquietantes. Como animais produzidos pela natureza, não somos de todo desprovidos de qualidades e méritos”.
André Comte-Sponville.

- Nosso dentro é fora e nosso fora é dentro. O que escondemos é o que mais expomos. Dentro e fora não fazem sentido.
Georges Lacombe. Isso me lembra uma frase de Manuel de Barros que é, de memória, mais ou menos assim: O meu interior é mais visível que um poste.

PERRENGUES DO DIA-A-DIA

- Sua mulher dirigindo seu carro. (Do banco do carona).
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sábado, 5 de fevereiro de 2011

HAI-KAI DISTRAÍDO

Chuva de verão
Terra molhada.
Cheiro de chuva.
SOBRE DEUS
- Se não vemos Deus e se não podemos compreender porque ele se esconde, talvez seja, simplesmente, porque ele não existe. (...) Pretender que Deus se esconde para preservar nossa liberdade seria supor que a ignorância é um fator de liberdade. (...) A ignorância em que Deus nos mantém, no que concerne à sua existência, não poderia se justificar pela preocupação que ele teria de nos deixar livres. É o conhecimento que liberta, não a ignorância. André Comte-Sponville, “Deus existe?”. In: O espírito do ateísmo.
- Fico pasmo quando vejo vítimas da tragédia na Serra agradecendo a Deus o fato de estarem vivas. Deus? Como assim? Onde estava ele ANTES da tragédia? Não sabia? Não previu? Porque não impediu? Deus: to fora!

SOBRE UM SAPO
Era uma vez uma comunidade de sapos que vivia modesta e conformada no fundo de um poço escuro e úmido. Entre eles havia um sapo mal visto e mal falado, meio trapalhão, rebelde e marginal, que teimava em pular mais alto que todos. Um dia, pulou tão alto que foi parar fora do poço, e aí...bem, aí a comunidade de sapos continuou conformada e modesta no fundo do poço úmido e escuro a falar mal do sapo rebelde e trapalhão. Mas ele, ah, nem te conto...

SOBRE O VAZIO
- Caminhar por caminhos próprios por e para dentro de si mesmo, é ter um encontro marcado com o vazio. A doutrina budista do vazio afirma que ele é desprovido de forma. Então, do ponto de vista existencial, o vazio é conteúdo com ausência de forma, significando que, sem forma pré-determinada, cabe a cada um ser aquilo que deve, que pode, que consegue ser. Preencher-se, subjetivar-se, ser para si. Sem forma fixa, o vazio manifesta - e é manifestado - por cada coisa tal qual é. Por isso, existencialmente, vazio é ausência de forma fixa, isto é, é conteúdo que cada um preenche, conforme vive.

SOBRE O CETICISMO
- Segundo Wittgenstein, o ceticismo carece de sentido porque duvida do que não pode, sequer, ser perguntado.

SOBRE O ZEN
- A espiritualidade do zen - qualquer espiritualidade - tem mais a ver com vocação e imaginação pessoal, que com religião formal. Essa é uma das razões pela quais o zen não se encaixa e não se molda ao modelo religioso tradicional: maleável, permeável, desdobrável, o zen é sugerível.
- A experiência do Zen é, pois, a experiência do satori; levando-se em conta que essa experiência na realidade transcende todas as categorias de pensamento, o Zen não demonstra qualquer interesse em qualquer modalidade de abstração ou conceituação. Não possui qualquer doutrina ou filosofia especiais, dogmas ou credos formais e afirma que essa liberdade perante todas as formas fixas de crença é que o torna verdadeiramente espiritual. In: Fritjof Capra, O Tao da física.

SOBRE O BUDISMO
- É uma teologia, uma mitologia, uma tradição pictórica e literária, uma metafísica, uma doutrina de salvação (...) Se existissem tantos Ganges como existem grãos de areia no Ganges, e outra vez tantos Ganges como grãos de areia nos novos Ganges, o número de grãos de areia seria menor do que o número de coisas que o Buda ignora. Jorge Luiz Borges e Alicia Jurado. In: Buda.

- Não é o fim, mas o meio, não é o objetivo mas o caminho; quem o segue não o atinge, quem o atinge não o segue mais. André Comte-Sponville. In: Uma educação filosófica.

- É uma maneira de viver e de encarar a vida que não se integra em qualquer das categorias formais do pensamento moderno ocidental. Não é religião nem filosofia; não é uma psicologia nem um tipo de ciência. Alan Watts. In: O Budismo Zen.

- (...) Surgiu após séculos de atividade filosófica; o conceito de Deus já não tem qualquer valor em sua gênese. O budismo é a única religião autenticamente positiva que a história nos mostra, também incluída aí a sua teoria do conhecimento; ela nãodiz ‘luta contra o pecado’, senão, dando total razão à realidade, diz ‘luta contra o sofrimento’. Deixa atrás de si- e isso distingue-o profundamente do cristianismo – esse logro de si próprio que são as concepções morais; coloca-se, para falar a minha linguagem, para além do bem e do mal. (...) O Budismo possui por herança a faculdade de saber formular os problemas de forma fria e objetiva; surgiu após séculos de atividade filosófica; o conceito de Deus já não tem qualquer valor na sua gênese. O Budismo é a única religião autenticamente positiva que a história nos mostra, também incluída aí a sua teoria do conhecimento (um fenomenalismo rigoroso); ela não diz ‘luta contra o pecado’ senão, dando total razão à realidade, diz ‘luta contra o sofrimento’. Deixa atrás de si - e isso distingue-o profundamente do cristianismo - esse logro de si próprio, que são as concepções morais; coloca-se, para falar a minha linguagem, para além do bem e do mal. (...) É excluída a oração, assim como o ascetismo; nenhum imperativo categórico, absolutamente nenhum constrangimento (...) É por essa razão que o Budismo não exige a luta contra os que pensam de maneira diversa; a sua doutrina nada repudia, a não ser o sentimento de vingança, a aversão, o ressentimento. Frederich Nietzsche, O anticristo.

- Perguntaram ao Grande Mestre Zen da Amexeira qual era o significado maior do budismo, e ele respondeu florzinhas no campo, galhos de salgueiro, pontas de bambu, fios de linho, em outras palavras, segura firme, rapaz, o êxtase é generalizado, é isso que ele quer dizer, o êxtase da mente, o mundo não e nada além da mente, e o que é a mente? A mente não é nada além do mundo, caramba. Então o Cavalo Ancestral disse: ‘Essa mente é o Buda’. Ele também disse: ‘Nenhuma mente é o Buda’. Jack Kerouac. In: Os vagabundos iluminados.

- Mas o que não posso entender é que alguns budistas adorem o Buda como a um Deus, quando ele mesmo nega do modo mais explícito sê-lo. In: R. M. Smullyan. El silencio del zen.

- [A doutrina budista] não parte de nenhum impulso inicial de intervir no mundo, para dominá-lo ou transformá-lo. Sua transmissão, aqui e ali, contém advertências de que ela, com o tempo, desaparecerá completamente, inevitavelmente, se tornará superficial, e será completamente irrealizável e inútil para as futuras gerações. In: Heinrich Zimmer, Yoga y Budismo.

- Uma vez perguntado sobre o que era o Budismo, Bodhidharma, segundo a tradição o introdutor do Budismo na China, respondeu: “Vazio insondável, e nada de sagrado”. In: Dominique Dussaussoy, Le bouddhisme zen.

SOBRE O SÁBIO
- O sábio se afasta e se exime de todo erro e paixão, considera e julga todas as coisas, não se choca nem se agarra a nenhuma, mas permanece completamente franco, inteiro e contente consigo mesmo. Pierre Charron, Pequeno tratado da sabedoria.

SOBRE SER DONO DO PRÓPRIO NARIZ.
- Diogenes Laêrtios atribuía ao filósofo Pirro a seguinte sentença: “Não definir coisa alguma, ou antes, não aderir a opinião alguma”. In: Diôgenes Laêrtius, Vidas e doutrinas de filósofos ilustres.

- O fruto mais saboroso da auto-suficiência é a liberdade. In: Epicuro, Pensamentos.

- O médico, filósofo e alquimista medieval Paracelso gravou no seu brasão de família: “Não siga a outro, aquele que pode seguir a si-próprio". In: Carl Gustav Jung, O espírito na arte e na ciência.

- Não me deixarei orientar nem pelo Yoga-Veda, nem pelo Atarva-Veda, nem por ascetas, nem por doutrina alguma. Aprenderei por mim mesmo. Serei meu próprio aluno; procurarei conhecer-me a mim. In: Hermann Hesse. Sidarta.

-Alegra-me (...) que os próprios homens tenham alguns coices a dar antes de se tornarem membros submissos da sociedade. Sem dúvida, nem todos os homens são súditos igualmente adequados para a sociedade. E porque a maioria, como cães e gatos, é submissa por disposição herdada, isto não é motivo para que os outros devessem ter suas naturezas rompidas a fim de serem reduzidos ao mesmo nível (...) uma vida bem sucedida não conhece nenhuma lei (...) em suma, todas as coisas boas são selvagens e livres. In: Henry David Thoureau, Caminhando.

- Não tenha medo/não preste atenção/não dê conselhos/ não peça permissão/é só você quem deve decidir o que fazer. Renato Russo.

- Faça o que tu queres, pois é tudo da lei. Raul Seixas.

- E a única forma que pode ser normal/é nenhuma regra ter/E nunca fazer nada que o mestre mandar/Sempre desobedecer/Nunca reverenciar. Belchior.

Em tempo: "Ni Dieu, ni maitre" é uma velha palavra de ordem do anarquismo.

SOBRE O PENSAR
- De que valeria a obstinação do saber se assegurasse apenas à aquisição de conhecimento e não, de certa maneira e tanto quanto possível, o descaminho daquele que conhece? Existem momentos na vida onde a questão de saber se se pode pensar diferentemente do que se pensa (...) é indispensável para continuar a olhar ou a refletir (...) Mas o que é filosofar hoje em dia - quero dizer, a atividade filosófica - senão o trabalho crítico do pensamento sobre o próprio pensamento?.E não consistir em tentar saber de que maneira e até onde seria possível pensar diferentemente em vez de legitimar o que já se sabe. Michel Foucault. In: História da sexualidade.

- Eu gostaria de, com o meu trabalho, não poupar ao outro o esforço de pensar, mas antes, na medida do possível, incitá-lo a pensar por si. In: Ludwig Wittgenstein, Investigações filosóficas.

- Uma vez que os avanços do saber só podem ser obtidos em uma certa confusão, deliberadamente aceita e alimentada, a busca da clareza por si só deve ser considerada como a iniciativa obscurantista e reacionária por excelência. In: Jacques Bouveresse, O futuro da filosofia.

- No entanto, precisávamos estar atentos para aquilo que, na utopia, ampliava o campo do que podia ser pensado. In: Leandro Konder, Memórias de um intelectual comunista.

SOBRE O MISTÉRIO
- Ao designar-se Deus ou o Tao como um impulso ou estado da alma, com isso só se diz algo sobre o cognoscível, e nada sobre o incognoscível; acerca deste último, até agora, nada foi descoberto. In: Carl Gustav Jung e Richard Wilhelm, O segredo da flor de ouro.

SOBRE A POESIA
- As línguas são imperfeitas, pra que os poemas existam. Adélia Prado.

- A poesia é uma espécie de sacrifício em que as palavras são as vítimas (...) A poesia não é mais que um desvio; com ela escapo do mundo do discurso, quer dizer, do mundo natural (dos objetos); com ela entro numa espécie de tumba a partir da qual a infinidade dos possíveis nasce da morte do mundo lógico. Georges Bataille.

- A poesia é uma metafísica instantânea. Ela deve dar, num breve poema, tanto a visão do universo, quanto o segredo de uma alma. Gaston Bachelard.

- [O poeta] trai a razão usando seu veículo: a palavra, para deixar que por ela falem as sombras, para fazer delas a forma do delírio. Maria Zambrano.