Sala cheia, três jovens mulheres idosas... e eu.
Finjo que durmo, em parte por timidez intrínseca, fobia social e uma irrecusável determinação de não participar de "abobrinhas" recheadas de senso-comum. Mas, como voyer profissional, permaneço atento e não perco uma vírgula das idéias comuns e corriqueiras que circulam pelas poltronas da sala.
Bem, a conversa gira em tono de tudo e todos: dos filhos e netos que tiveram e criaram; das viagens que fizeram e das que querem fazer no futuro (para quem tem câncer, o futuro é ali, logo na esquina); dos tratamentos, das mazelas de cada uma e das estratégias diante da própria dor; falam de religião, do que acreditam ou não acreditam, falam de uma mesma fé - misteriosa pra mim - que alimenta, socorre e ampara a todas.
Falm de bichos (uma lamenta a morte de seu cachorro, morto aos dezoito anos); falam de modas, de supermercados, de comidas e receitas diversas, que trocam entre si; e falam, então, dos livros que leram ou que ainda querem ler. E eis senão quando, de repente, assim como quem não quer, a que estava a meu lado - Fátima - solta a seguinte pérola de sabedoria existencial: "Livros são cachorros de papel".
Caramba! Não acreditei no que tinha ouvido, e tive que repetir pra mim mesmo: "Livros são cachorros de papel".
Como pode uma mulher dessas, enroscada entre fios de medicamentos diversos que tombam do teto, formular um pensamento com tanta beleza e precisão, tão profundas e ricas implicações filosóficas? E continuar, em seguida, abobrando como se nada houvesse dito que merecesse ser lembrado? (a função das "abobrinhas" é meramente comunicativa, sem embutir qualquer tipo de verdade necesária).
Silêncio em mim, perplexidade, euforia por estar ali naquele momento mágico em que uma verdade emerge por entre os escombros de opiniões merante circulantes. Imediatamente soube que essa frase não podia morrer ali, por entre as demais"abobrinhas" que pairavam, leves e soltas, sobre a sala.
Valham-me anos e anos de leituras filosóficas, valham-me Nietzsche eWittgenstein, que gostavam de formular seus pensamentos em forma de aforismos, assim como esse que acabava de ouvir dessa sábia e anônima mulher sentada ao meu lado.
Valham-me, sobretudo, os livros de minha biblioteca que, agora sei - graças e essa improvável filósofa do cotidiano - nada mais são que fiéis cachorros, desses que nos lambem, nos afagam e nos cobrem de afetos e de mudas sabedorias.
Na saída, agradeci a ela por ter iluminado minha tarde.
Mas acho que ela não entendeu bem porque.
Samanea tubulosa (Benth.) Barneby & grimes
Há 10 anos